31 de março de 2016

MAIS UM "CAFÉ DE LA PAIX"


[Aviso à navegação: este é um post excepcionalmente longo. 
Arranjar uma cadeira.]

Tenho adiado trazer aqui memórias de Paris por saber que qualquer coisa que tente desenhar já terá sido vista um milhão de vezes. Não conheço nenhuma cidade mais pintada do que Paris, ou alguma em que se vejam tantos pintores de rua no seu afã eterno. Por isso, quando finalmente me decidi, saudosa, rabiscar a cidade, resolvi evitar o Sena a todo o custo, a Torre Eiffel, claro está, e outros lugares-comuns como o Sacré Coeur e Notre Dame. Vou desenhar uma esquina, decidi. Uma cena de rua, com gente e carros, talvez um monumento, sim, mas em segundo plano. Ah, e uma esplanada! Como desenhar Paris sem as suas esplanadas? Mãos à obra, pensei, determinada. E saiu-me isto:





O que aqui vêem é o Café de la Paix, com a Ópera a espreitar em segundo plano. (Comi ali certa vez um mille feuilles com - imagine-se - pétalas de rosa que, além de me custar uma fortuna, me deu a impressão que estava a engolir um perfume de avó.) Quando acabei o desenho, longe estava eu de saber, por muito que pressentisse a concorrência esmagadora, que...
...este mesmo sítio (sim, este mesmo, o exacto ângulo que eu escolhera!) já tinha sido pintado 'n' vezes. Over and over again! E por vezes repetidamente pelo mesmo autor. Deixo aqui meia dúzia de exemplos, reduzida que fiquei à minha estúpida insignificância. Começo por dois óleos de Édouard Cortés, um pós-impressionista de vida longa (1882-1969) que pintou o mesmo ângulo em décadas bem distintas: uma com caleches e outra já com automóveis:




Antoine Blanchard (1910-1988). Voltam a figurar as caleches e as maxi-saias, continua a ver-se a árvore (linda), o quiosque e os interiores iluminados:


Jean Boyer (1915-1995) pintou a mesma esquina, desta vez com neve, e a cúpula a surgir estranhamente sobre a fachada da ópera (habitualmente só se consegue vislumbrar de um ângulo mais distante e elevado, como no exemplo seguinte):



Neve ainda, mas agora de noite, caleches outra vez, o toldo incaracteristicamente carmim, mas tudo num registo naif: é Michel Delacroix (nascido em 1933, não confundir com Eugène Delacroix):


A lista continua, com estilos variados, para todos os gostos... Mais três:

Henderson Cisz, pintor brasileiro nascido em 1960. De novo as reverberações do entardecer:


Leroy Neiman (1921-2012): cor expressionista, calor, joelhos femininos, diversidade etária e um polícia de luvas brancas algo abatido:


O mais recente que encontrei foi este, datado de 2014, de um tal Ricardo Massucatto, em que os transeuntes usam todos XL. Pelos vistos, esta esquina continua a acumular adeptos no mundo dos pincéis:



Bom, fico por aqui, gota de água a evaporar-se no meio do oceano. Não que os meus pobres desenhos alguma vez tivessem tido ilusões de originalidade, mas isto?... Enfim. Acho que no Café de la Paix servem umas bebiditas de consolação. Levo comigo a mala e já nem me lembro deste exército de esquinas a rir-se de mim.


12 comentários:

  1. Thanks for sharing your painting as well as the others. It's very interesting to view all of these images of the same location made by different artists over different periods.Muchas gracias.

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    1. You are most welcome! I'm glad you enjoyed it.
      I also found it interesting to compare, but the truth is I was overwhelmed by the sheer number of versions of the same place and angle, of which I had no idea!
      Thank you also for your visit and congratulations on your beautiful work, which I've just visited.

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  2. Excelente ideia, a comparação.Estou há montes de tempo a olhar.
    Gosto do seu desenho/aguarela, com a vida a decorrer em tons diurnos.

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    1. Muito obrigada, José! Ainda bem que a minha modesta versão não me envergonhou. :) E é verdade, realmente (nem me tinha dado conta): eu optei pelo lado solar, ao passo que quase todos os demais preferiram o crepúsculo.

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  3. A ideia de colocar outros desenhos de outros pintores é excelente, estive um tempão apreciar cada desenho e cada detalhe, embora num em especial não consiga ver os detalhes com a mesma nitidez da Miú, mas isso é porque os meus olhos de leiga não alcançam :-) Édouard Cortés foi o pintor que mais gostei nesta lista que selecionou. Gosto das cores brilhantes e da luminosidade que a pintura transmite. Isto de vir cá ao seu cantinho está a enriquecer-me culturalmente o que me tem agrado imenso, pois ultimamemente dou por mim a olhar para a arte da pintura com outros olhos e a perceber mais um bocadinho da coisa, embora algumas me façam imensa confusão. Mas isso são pontos de vista diferentes e há pessoas que não foram 'talhadas' para a compreensão da arte e ponto.
    Quanto ao seu desenho não se menospreze Miú, está lindíssimo e com um ar de dia e umas cores bem ao seu jeito. Gosto muito :-)
    Beijinhos e bom fim-de-semana***

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    1. Fico contente que este "post" tão longo não tenha sido maçador. E que bom que a Joana se entreteve, como eu, a apreciar os pormenores! A arte é bem sucedida, julgo eu, quando consegue interpelar-nos, fazendo-nos parar e reflectir, abstraindo-nos do aqui e do agora. E este pequeno exercício só mostra, afinal, como tantos pintores se detêm sobre a mesma cena, mas de formas tão diferentes.
      Um beijinho!

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  4. É interessantíssimo este post.
    A originalidade de uma obra não reside no tema mas na forma como o apresentamos. Eu gosto bastante de ver o mesmo tema tratado por diferentes pessoas e não apenas obras pictóricas: as interpretações de peças musicais, as remakes cinematográficas... até o sentido obsessivo que o Cézanne conferiu à representação da Montanha Sainte-Victoire é muito interessante. Gosto bastante do seu desenho. Fica bem na galeria de iguais.

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    1. Fico feliz que tenha gostado, Luís!
      Essa recorrência, por vezes quase obsessiva, de um determinado motivo na obra de um autor mostra talvez o carácter inesgotável da criatividade, ou então essa ânsia de compreensão, ou auto-superação, que tantos artistas manifestam. E sim, tem razão: revisitar um lugar olhado por outros pode ser também renovador e não meramente limitativo.

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  5. La mejor de todas: La tuya!!! Je, je.
    Qué idea tan hermosa has tenido de buscar aquellas pinturas que contienen la misma composición que la que has dibujado.
    Primero, te diré que tu dibujo es fantástico. Auténtico y actual. Ahora solo falta aquél que dibuje el mismo escenario que en la fotografía con esa bella imagen delante y será una más de la serie. Quizás algún día me atreva y la haga yo mismo en dibujo tipo sketching.
    Un abrazo.

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    1. Sim, Joshemari, essa sim era uma óptima ideia: juntar a sua versão, que de certeza ficará lindíssima, a esta galeria! (...mas sem a imagem pateta na frente, eheh!)

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  6. Aprendi muito neste post. Realmente o ângulo é muito bem escolhido e são várias as opiniões a favor. Mesmo sem conhecermos os quadros podemos sempre fazer um que será uma imitação, apenas por ser do mesmo local. Até a escolha das pessoas a circularem dá muita vida à cena. E comprovado por todos.
    Belo desenho, Miú!

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    1. Muito obrigada, Henrique!
      Pois, é isso mesmo: mesmo sem conhecermos, às tantas estamos a pisar exactamente o mesmo caminho que tantos outros antes de nós!

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